(PT)
Dizer
que José Marques da Silva foi o arquiteto que moldou a fisionomia do Porto no
início do século XX significa que, para compreender a sua figura, devemos
procurar identificar não apenas a sua obra construída mas também o peso dos
seus argumentos e ideias na cultura da cidade. A sua primeira obra de grande
significado urbano foi a Estação de São Bento (1896-1916). Ela assinala de um
modo monumental a reconfiguração urbana despoletada pela chegada do caminho de
ferro ao centro da cidade. Não só se estava a reinventar o papel regional do
Porto como um centro de serviços que exigia um novo aparato simbólico, como
também a própria orgânica funcional do centro, definitivamente deslocado da
cota baixa na Ribeira para a cota alta, na praça da Liberdade. Na sequência
natural da Estação, a Avenida dos Aliados foi o projeto urbano que consolidou
essas dinâmicas e, como arquiteto municipal, Marques da Silva geriu os
interesses do plano e coordenou a implementação dos projetos que a
configuraram, para além de ter desenhado alguns dos seus edifícios. Para além
dessa função determinante na reinvenção do Porto, Marques da Silva construiu
várias outras obras no centro da cidade, como o Teatro Nacional de São João
(1910-1920), a conclusão do Palácio do Conde de Vizela (1920-1923), o Edifício
das Quatro Estações (1905), os Liceus Alexandre Herculano (1914-1930) e
Rodrigues de Freitas (1919-1933) e várias casas de habitação unifamiliares
consolidaram no Porto o seu prestígio como arquiteto. Também em Guimarães
construiu obras de grande significado urbano, como a Sociedade Martins Sarmento
(1903-1908), o Mercado Municipal (1927-1947) e o Santuário da Penha
(1930-1947), assim como em Braga o Edifício das Obras Públicas (1905) e em
Barcelos um prédio na rua Barjona de Freitas (1940). Entre as suas principais
obras conta-se também a Casa e Jardins de Serralves, no Porto, (1925-1943)
onde, em sintonia com o seu cliente, conciliou as contribuições de prestigiados
arquitetos franceses numa obra com qualidades singulares. A sua obra funda-se
na aprendizagem da arquitetura académica, primeiro no Porto na Academia de
Belas Artes (1882-1889) e depois em Paris onde frequentou a École Nationale de
Beaux-Arts (1889-1896). A arquitetura das beaux-arts, consolidada ao longo de
todo o século XIX, associou aos valores da tradição clássica as componentes da
razão, promovendo esquemas de composição funcional (mais adaptados às mecânicas
da vida moderna) guarnecidos com um aparato formal capaz de atribuir um caráter
forte aos edifícios (garantido a presença decorativa). Visível sobretudo em
edifícios monumentais, o expoente máximo é a Ópera de Paris (1860-1875) de
Charles Garnier (1825-1898). Marques da Silva formou-se nesse contexto
beaux-arts, na companhia de estudantes Norte Americanos, Gregos, Russos,
Italianos, Egípcios, Sul-americanos e Escandinavos que frequentavam o atelier
de Victor Laloux (1850-1937). Na viragem do século, quando Marques da Silva
regressou ao Porto para iniciar a sua prática profissional, o programa
internacionalmente divulgado das beaux-arts enfrentava desafios complexos. A
principal desadequação dessa prática resultava dos processos construtivos que
exigia, pouco adequados aos novos sistemas de produção industrial que então
estavam em expansão. Contudo, os ataques mais ferozes a que estava sujeita
vinham do desajuste da sua expressão formal perante os desejos simbólicos de
uma sociedade em transformação. Pode dizer-se que teve lugar um verdadeiro
combate, entre os defensores da depuração formal eventualmente resultante das novas
técnicas construtivas, aqueles que defendiam a manifestação simbólica de
convicções políticas e, também, quem defendia o ecletismo “ao gosto do
freguês”. Nesse contexto de indefinição e antagonismos, Marques da Silva soube
manter uma integridade disciplinar muito estável. Sem nunca trair a sua
filiação beaux-arts, foi acertando a sua prática para corresponder às
aspirações da sociedade. Esse sentido de compromisso oportuno foi o motor da
sua prática pedagógica. Entre 1913 e 1939 assumiu a direção da Escola de Belas
Artes do Porto, onde foi mestre de várias gerações de arquitetos. O desenho,
como instrumento central da prática do projeto, foi o motor do seu ensino,
empenhado em transmitir processos metodológicos estáveis capazes de reagir às
múltiplas solicitações da prática profissional. Foi uma estratégia que lhe
garantiu a estima de várias gerações de arquitetos modernos que, partindo da
base académica sedimentada por Marques da Silva, souberam reinventar a prática
da arquitetura portuense.
Nas suas múltiplas frentes de atuação Marques
da Silva deixou um legado duradouro na cultura arquitetónica portuense, na
paisagem da cidade, na cultura de projeto dos arquitetos, nas práticas de
ensino, numa certa forma de fazer e pensar a arquitetura que se foi consolidando
no Porto ao longo do século XX.
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